Quem sou eu

São Paulo, Brazil
Sou professora universitária,mestre em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo e atualmente ministro a disciplina de Ética. Este blog contém material de uso em minhas aulas, elaborado através de pesquisas bibliograficas, para consulta de alunos e outros interessados.

domingo, 30 de março de 2008

POLÍTICA E CIDADANIA - 3 A

Política e Cidadania

As relações humanas e o Poder

Convivendo com outros homens, os conflitos de vontades e interesses são sempre inevitáveis. No momento do impasse, que é uma luta entre diferentes desejos, um indivíduo quer impor ao outro a sua vontade. Normalmente quem vence esse conflito é aquele mais bem aparelhado: dependendo da circunstância, pode ser o mais forte, o mais inteligente, o mais jovem, o mais bonito...

A capacidade de transformar as vontades dos outros na sua vontade é aquilo que chamamos de poder. Numa primeira aproximação, o poder seria a capacidade de realizar qualquer ato ou ação; um aspecto importante é que ele pressupõe até mesmo a oposição, constituindo, então, a capacidade de superar essa oposição pela força, impondo-se a ela. De modo geral, o poder seria a potência para realizar determinado desejo ou vontade.

O jogo de poder apresenta-se, assim, como um jogo de vontades, no qual a vontade de um - o mais forte, por alguma razão - acaba se impondo sobre a vontade de outro ou outros. A noção de poder implica também a capacidade de ter suas ordens obedecidas. Aquele que é investido de poder - um indivíduo ou urna instituição - tem a chance e os instrumentos para potencializar suas vontades, transformando-as em atos.

Não podemos, entretanto, julgar que a ação do poderoso dá-se unicamente no sentido de subjugar e neutralizar a(s) vontade(s) alheia(s). Embora em casos bastante específicos a ação hegemônica do poder só seja possível por meio da neutralização das demais vontades - é o caso do totalitarismo, de modo geral, o poder age pelo convencimento e pela manipulação das vonta¬des alheias. Assim, em vez de agir pela neutralização das vontades, o poder age muito mais por meio de sua transformação; tornar o conjunto das vontades diferentes e tomá-las urna, a vontade do poderoso, com a qual os demais devem concordar.

Nessa visão clássica do poder, ele é compreendido como uma coisa que se concentra em determinados espaços de um grupo social: o lugar do poder é o Palácio do Governo, é a Câmara dos Deputados, ou mesmo o próprio corpo do rei, que a todos governa.
Se apenas um tem o poder, todos os outros indivíduos não têm poder algum: é urna sociedade servil. Mas de onde viria o poder desse indivíduo? Por que todos o obedecem?

Um filósofo do século XVI chamado Etienne de Ia Boétie, num pequeno livro, o Discurso da servidão voluntária, forneceu a pista para entender a charada: quando um indivíduo manda, seu poder vem não dele mesmo, mas dos outros que se submetem. De sua perspectiva, o que sustenta o tirano não é a sua própria autoridade, mas a entrega dos súditos, isto é, a dominação só é possível com o concurso direto dos próprios dominados. Segundo ele, em torno do tirano constrói-se urna rede de interesses. O tirano tem 6 assessores diretos, cada um deles tem mais 60 empregados e assim por diante, de modo que toda a sociedade acaba envolvida nessa rede de interesses.

Desse modo, o que garante o poder do tirano é uma rede de micro-poderes e interesses que se constrói a sua volta, o que, ao invés de enfraquecer esse poder central pela diluição, fortalece-o, sendo seu próprio sustentáculo e sua própria garantia.

Mas, se os indivíduos se recusarem a servir, acaba o poder do tirano. Portanto, a sociedade servil depende do consentimento dos indivíduos; se eles resolverem não mais obedecer a um rei e solucionar seus próprios problemas políticos, eles podem construir novas formas de relação social.


A política

Ao decidir fazer algo, o ser humano deve levar em conta seus interesses. O interesse é o objetivo que a decisão poderá alcançar. Por exemplo: quando alguém decide estudar, acredita que, com um nível mais alto de conhecimento, poderá conseguir uma ascensão, seja profissional, social ou interior. Esse mesmo alguém prefere o estudo ao analfabetismo. Estão implicados nesta ação o interesse em ascender e a decisão de se alfabetizar. Em filosofia, isso é o que chamamos de valor.

Todo ato humano está fundamentado em determinados valores, em determinados interesses; para dizer de outra maneira, sempre que fazemos alguma coisa, temos em mente algum objetivo a ser alcançado com aquela ação.

Até aqui, a discussão se fez em um nível particular. A discussão sobre a orientação das ações humanas em caráter particular é chamada de ética; é ela quem pode nos ensinar a bem conduzir nossas vidas. Mas, quando alguém procura conduzir a um público maior seu interesse e sua decisão, a fim de que esse público se engaje, ele está exercendo aquilo que denominamos de política.

Se a ética é a reflexão sobre a fundamentação dos atos humanos em sua particularidade - isto é, no que diz respeito à vida privada de cada indivíduo -, a política é a reflexão sobre os atos humanos que se cometem em sociedade, na vida pública. O engajamento do público se dará pelos interesses que estiverem em jogo.

Portanto, política é a tomada de decisões que visem objetivar interesses que irão refletir na coletividade. Deve ficar claro para você que ética e política devem sempre andar juntas, pois, se vivemos em sociedade, é muito difícil distinguir se determinadas ações que fazemos terão conseqüências apenas privadas ou se estenderão para outras pessoas, na esfera pública. Apenas um exemplo: se alguém decide estudar para conseguir certa ascensão social, isso não diz respeito apenas a essa pessoa; para a coletividade, faz muita diferença tornar parte dela um indivíduo analfabeto ou um indivíduo bem formado.

No momento em que se fala sobre política, logo vem à mente o governo. Faz-se a relação de que fazer política é governar. Se pensarmos assim, apenas poucas pessoas "fazem política". Mas será que, de fato, a política é apenas exercida na esfera do governo?

Também se fala muito que vivemos sob a forma de governo chamada democracia. Abrimos um jornal ou uma revista e lá está essa palavra estampada. Na televisão e no rádio também se diz muito sobre ela. Mas que coisa é essa? O que é a democracia? Você já pensou a respeito?

A democracia

Vamos recuar um pouco no tempo e dar uma olhada na polis grega, que foi a primeira experiência histórica de democracia.

Os gregos, que no início eram tribos de pastores nômades, aos poucos foram se fixando em determinadas regiões, quando começaram a dominar as técnicas da agricultura e da pecuária. Como os demais povos antigos, começaram a constituir as cidades que, na sua língua, chamaram de pólís. Mas as cidades antigas eram um tanto quanto diferentes das nossas, pois eram unidades políticas autônomas.

O que significa isso? Ora, a cidade na qual você mora não tem autonomia política; ela pode criar algumas leis, mas está submetida a uma série de leis estaduais, sendo que os Estados brasileiros, por sua vez, estão submetidos a leis federais. Nos dias de hoje, os países são as unidades políticas autônomas. No tempo dos gregos antigos, era como se cada cidade fosse um verdadeiro país, pois ela criava suas próprias leis. Por exemplo: uma lei válida em Atenas poderia não existir em Esparta ou em Delfos.

A convivência entre os indivíduos, o envolvimento com os negócios relativos à administração da cidade, da pólís é o que eles chamavam de política. Muitas formas os gregos criaram para administrar a cidade, dependendo de como as pessoas se envolviam com essas atividades. Quando apenas uma governava, chamavam de monarquia; quando era um grupo maior de pessoas que se envolvia com a administração, chamavam de aristocracia. Num certo período da história de Atenas, uma das principais cidades gregas, por volta do ano 500 a.c., um legislador chamado Clístenes resolveu fazer uma reforma radical, fazendo com que todos os cidadãos se envolvessem com as atividades de administração da cidade.

Clístenes fez uma arrojada divisão do território de Atenas, sendo que a cada unidade regional básica ele chamou de demos. Dos 30 demos que compunham a cidade eram sorteados os indivíduos que participariam dos diversos conselhos administrativos, encarregados da criação das leis e de sua execução. A aprovação das leis era feita pela Assembléia, que se reunia uma vez por mês e da qual poderiam participar todos os cidadãos. O nome democracia significa, portanto, governo de demos, e não exatamente governo do povo como normalmente se diz.

Se as decisões eram tornadas nas Assembléias, os homens precisavam exercer seu poder de persuasão nos debates realizados em praças públicas. O resultado desses debates eram decisões que refletiam na vida de todos os habitantes da pólis. Para fazer valer seus interesses, um indivíduo precisava dominar com perfeição as artes da retórica e da oratória, para convencer os demais a votar naquilo que ele defendia. Nesse momento, quando os homens tentavam convencer uns aos outros sobre determinadas coisas, estavam em pé de igualdade. A igualdade que todos tinham de falar para a pólis na Assembléia.

Entretanto, um último detalhe histórico é necessário: nesse período, a cidade de Atenas contava com urna população de aproximadamente 400 mil pessoas. Mas nem todas eram cidadãs: os 200 mil escravos não eram considerados nem como gente; os 100 mil estrangeiros e mais as 60 mil mulheres e crianças não tinham direitos políticos. Eram cidadãos apenas 40 mil indivíduos livres do sexo masculino. E eram esses 10% da população que participavam da administração da cidade.

Na Idade Moderna, quando as revoluções burguesas colocam fim ao regime feudal da Idade Média, a democracia volta à cena: é esse regime que será implantado como o melhor meio de governar, em oposição à monarquia que havia predominado até então. Mas agora já não existem escravos e a unidade política passou a ser o país (ternos o Estado-nação e não mais a cidade-Estado), o que permite que mesmo as pessoas nascidas em outras cidades tenham direitos políticos. Como garantir então a participação de todos? A noção moderna de democracia como acesso de todos os indivíduos à administração da sociedade passa pela questão da representatividade. Clístenes criou em Atenas urna democracia direta ou participativa (todos os cidadãos participavam diretamente da administração), ao passo que a modernidade colocou a idéia de urna democracia representativa, isto é, um sistema no qual os indivíduos elegem urna certa quantidade de pessoas que vão representar seus interesses nos assuntos de administração da sociedade.

A idéia é a seguinte: a ação democrática consiste em todos tornarem parte do processo decisório sobre aquilo que terá conseqüência na vida de toda a coletividade. Quem pode dizer o que é bom para todos? Aquele mesmo que irá provar - o próprio ser humano. Se não de forma direta, pelo menos por meio de seus representantes, desde que ele se mantenha ativo e vigilante, acompanhando o trabalho daqueles que elegeu.

Mas a democracia representativa, se supostamente garante o acesso de todos aos mecanismos do poder, também possibilita o fenômeno da marginalização.


A marginalização política

Vamos nos reportar novamente ao isolamento. Os marginalizados políticos se retiram do processo decisório e se afastam dos demais. Abdicam do direito de falar sobre assuntos de interesse coletivo. É a instituição do silêncio político. Eles o fazem porque acreditam que assim poderão resolver melhor seus problemas particulares. Na época das eleições, desligam a TV na hora do horário eleitoral gratuito, ou a deixam ligada sem prestar atenção ao que os sujeitos dizem. No dia de votar, cumprem com seu dever votando em qualquer um, pois tanto faz: "São todos iguais, mesmo."

Temos o abandono das questões públicas e a excessiva preocupação com as questões particulares. Cria-se um amontoado de indivíduos que buscam tão somente voltar seus olhos para si mesmos. Nesse amontoado, ninguém se propõe a falar. O único conselho dado é não aconselhar. Esses indivíduos não se preocupam em votar em alguém que possa representar seus interesses e suas necessidades no governo.

E parecem não perceber que, queiram ou não, vivem em meio a outros indivíduos, o que significa que sua vida depende dos outros e que aquilo que ele fizer também influenciará nas vidas alheias.
O que significa isso? Relembrando que viver é acima de tudo conviver, a esfera pública sempre vai existir. Se sempre existirá, alguém estará se ocupando dela. Quanto menos as pessoas participarem da política mais os interesses daqueles que se ocuparam da esfera pública irão prevalecer. As decisões a serem tomadas serão baseadas nesses interesses particulares, e não visando aos interesses coletivos.

O silencioso político, queira ou não, perceba isso ou não, assume o que foi decidido pelos outros, sem nem mesmo colocar a público seu interesse. Portanto, assume a obediência e abdica da auto-direção. Herda o status de governado e não o de governante. Quem prioriza em demasia suas questões particulares, priva-se da autodeterminação.

Mas as engrenagens da máquina de governo democrática não param de funcionar apenas porque algumas pessoas - mesmo que sejam milhares ou milhões - não dão atenção a elas. Elas continuam a fabricar as leis e os mecanismos sociais por meio daqueles, mesmo que sejam poucos, que estão participando. Mas é claro que estará funcionando segundo as idéias e os interesses dos que participam e não daqueles que se omitem.

A democracia representativa permite ao indivíduo se esconder atrás de si mesmo e não participar, porque assim ele se exime da responsabilidade pelas questões políticas. É mais fácil afirmar que a questão da inflação é um problema do governo, que são os "políticos" que precisam resolvê-la.

Mas esses indivíduos se esquecem de que a inflação tem conseqüências sérias na sua vida particular, e que ele jamais poderá dar conta delas sozinho. As questões públicas são responsabilidade de todos nós e, mesmo que alguns indivíduos tenham sido eleitos para cuidar delas, não basta que eles ajam, é necessário que cada um de nós, como membro dessa sociedade, faça a sua parte por menor que seja.


A ação Cidadã

Ao trazer à tona o fato da marginalização política, podemos perceber que ela se volta contra o próprio ser humano. Quando os indivíduos se recusam a participar das decisões sociais, estão se recusando a decidir sobre suas próprias vidas. Estão aceitando que os problemas que dizem respeito a suas vidas sejam pensados e resolvidos por outras pessoas. Estamos, então, cara a cara com urna sociedade servil.

Atestado o problema, é imperativo que se encontre a solução. Essa solução é a participação dos cidadãos nas questões públicas. Entenda-se aqui cidadão como urna categoria de mobilização e não de localização. Para os gregos antigos, o político era aquele que participava dos negócios da pólis. Quando a cultura grega foi assumida e difundida pelos romanos, que falavam latim, a pólis virou a cive em sua língua. É da palavra latina cive que se origina a palavra cidade, no português, e é também dela que vem a palavra cidadão. Portanto, cidadania é sinônimo de política no sentido grego, assim como cidadão e político são a mesma coisa.

O cidadão não espera que o outro lhe dê as condições necessárias para participar, pois essas condições brotam de si mesmo. É a autodeterminação. O cidadão sabe que é preciso buscar; é preciso conquistar. É uma ação que não se acaba. O cidadão é sobretudo o participante.

Para ter urna participação política efetiva, os cidadãos devem se organizar para a defesa de interesses comuns, adquirindo vez e voz. Estamos nos referindo à passagem do servilismo para o exercício da autêntica destinação da vida.

Pela associação de todos os cidadãos, manter-se-á viva a noção de que o ser humano convive e far-se-á a defesa da democracia como a forma de governo que permite essa efetiva participação. E, com ela, os membros da sociedade não esperarão o chamamento, pois estarão participando por livre e espontânea vontade. Sílvio Gallo.