Quem sou eu

São Paulo, Brazil
Sou professora universitária,mestre em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo e atualmente ministro a disciplina de Ética. Este blog contém material de uso em minhas aulas, elaborado através de pesquisas bibliograficas, para consulta de alunos e outros interessados.

domingo, 9 de março de 2008

ÉTICA E CIVILIZAÇÃO - 2A

ÉTICA E CIVILIZAÇÃO

A FELICIDADE

Os seres humanos agem conscientemen­te, e cada um de nós é senhor de sua própria vida. Mas como resolvemos o que fazer? Você em algum momento já pen­sou em como você toma as decisões sobre o que fazer em determinada situação? Você age impulsivamente, fazendo "o que der na telha" ou analisa cuidadosamente as possibilidades e as conse­qüências, para depois resolver o que fazer?

A filosofia pode nos ajudar a pensar sobre nossa própria vida. Chama-se ética a parte da filosofia que se dedica a pensar as ações humanas e os seus fundamentos. Um dos primeiros filósofos a pensar a ética foi Aristóteles, que viveu na Grécia no século IV a.c. Esse filósofo ensinava numa escola à qual deu o nome de Liceu, e muitas de suas obras são resultado das anotações que os alunos faziam de suas aulas. As explicações sobre a ética foram anotadas pelo filho de Aristóteles chamado Nicômaco, e por isso esse livro é conhecido por nós com o título de Ética a Nicômaco.

Em suas aulas, Aristóteles fez uma análise do agir humano que marcou decisivamente o modo de pensar ocidental. O filósofo ensinava que todo conhecimento e todo o trabalho visa a algum bem. O bem é a finalidade de toda a ação. A busca do bem é o que difere a ação humana da de todos os outros animais

Ele perguntou: Qual é o bem mais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação? E como resposta encontrou: a felicidade. Essa resposta formulada pelo filósofo encontra eco até nossos dias. Tanto o homem do cotidiano como todos os grandes pensadores estão de acordo que a finali­dade da vida é ser feliz. Identifica-se o bem viver e o bem agir com o ser feliz.

No entanto, disse Aristóteles, a pergunta sobre o que é a felicidade não é respondida igualmente por todos. Cada um de nós responde de uma forma singular. Essa singularidade na resposta é partilhada por outros indivíduos com os quais convivemos. Portanto, no processo de nossa educação familiar, religiosa e escolar aprendemos a identificar o ser feliz com os valores que sustentam nossas ações.

Toda produção histórica dos seres humanos consiste em criar con­dições para que o homem seja feliz. Todas as religiões, as filosofias de todos os tempos, as conquistas tecnológicas, as teorias científicas e toda a arte são criações humanas que procuram apresentar condições para a conquista da felicidade.

O processo civilizatório iniciou-se com a pro­messa da felicidade.




RACIONALIDADE E LIBERDADE

O mesmo Aristóteles caracterizou os hu­manos como seres racionais que falam. A dimensão anímica ou psíquica (psiqué = alma) dos humanos foi concebida pelo filósofo como um composto de duas par­tes: uma racional e a outra privada de razão. A primeira expressa-se pela atividade filosófica e matemática. A segunda, por seus elementos vegetativos e apetitivos. Isso permitiu a hierarquização dos seres vivos.

Pela segunda parte da alma, somos iguais a todos os outros animais. Movidos pelos instintos primários (fome, sede, sono, reprodução), somos guiados pela necessidade de sobrevivência. Todos os seres vivos têm em comum um problema único a resolver: como sobreviver.

Necessitamos de alimentos para aplacar nossa fome; de água para saciar a sede; dormir para descansar o organismo; nos reproduzir por meio da atividade sexual e assim perpetuar a espécie. Mas o que nos diferencia dos outros animais? Segundo Aristóteles, é a racionalidade. Nós somos capazes de planejar nossas ações, de realizar escolhas e julgá-Ias, determinando seu valor. Agimos acreditando que estamos fazendo o bem e, mesmo quando julgamos mal nossas ações, é sempre o bem quem estabelece o critério de tal julgamento.

Assim, os seres humanos identificam-se como tais pelas distinções que são capazes de estabelecer com os outros animais e, por conseguinte, com todo o reino da natureza. Os seres humanos definem-se pela capacidade de pensar, falar, trabalhar e amar. Ainda com Aristóteles, podemos identificar três coisas que controlam a ação: sensação, razão e desejo. A primeira não é princípio para julgar a ação, pois também os outros animais possuem sensa­ção, mas não participam da ação.

A ação é um movimento deliberado, isto é, a origem da ação é a escolha. Os homens diferem dos demais animais porque são capazes de realizar escolhas. O desejo está na raiz dessas escolhas; a razão é o seu guia. Para Aristóteles, o desejo é a força motriz, o impulso gerador de todas as nossas ações. Mas essa força motriz deve seguir o curso traçado pela razão. A razão guia, conduz o desejo ao encontro de seu objeto.

Realizar escolhas é eleger objetos para o desejo. O critério das escolhas é sempre racional. O motivo é sempre emocional, ou seja, impulsionados pelo desejo, movemo-nos em direção aos objetos. Nesse sentido, a capacidade racio­nal de realizar escolhas permite-nos afirmar nossa condição de liberdade.

O exercício da liberdade é a capacidade de escolher. Nisso os humanos podem se desviar do determinismo que rege o mundo da natureza. Os animais jamais podem escolher. Suas ações são determinadas pelo padrão genético de suas espécies. Quando olhamos um filhote de cachorro, por exemplo, somos capazes de dizer seu comportamento futuro. Ao olhar para um bebê é impossível prever seu comportamento, suas ações e suas intenções.

É a escolha que define o caráter de um ser humano. Suas virtudes se manifestam nas escolhas que realiza no curso de sua condição mortal. Aqui se apresentam algumas questões éticas de grande relevância:
· Quais os critérios que norteiam as escolhas que um homem faz em sua vida?
· Quais são os valores que pautam as suas ações?
· Quais objetivos pretende atingir e com quais meios efetivará sua realização?

Afirma-se que toda ação deve ser justa e boa. Mas, o que determina a justiça e a bondade?
· O que é ser justo?
· O que é ser bom?


No exercício da liberdade, cada um de nós se relaciona com os outros indivíduos e dessas relações emerge a realidade social.

Chamamos sociais nossas relações com os outros no mundo. A sociedade é uma construção histórica pautada numa lei fundamental: é proibido matar o semelhante.

Civilização e valores

A civilização parece não respeitar a lei fundamental que criou para que pudesse existir: É proibido matar! Se existem prá­ticas homicidas, os critérios de bondade e justiça não são cumpridos. Os assassina­tos revelam o conflito irremediável entre a liberdade e a lei. A lei foi construí­da para garantir o exercício da liberdade. No entanto, acaso deveríamos julgar livres os indivíduos que praticam crimes? Seriam eles livres em suas ações ou não?

O critério de justiça determina a prisão (perda da liberdade) para quem cometer homicídio. Mas por que só os pobres são conO critério de justiça denados à prisão? Por que os chamados “crimes de colarinho-branco" não são punidos com a prisão? Observe que essas questões remetem ao campo da reflexão ética.

Em 1930, um médico vienense chamado Sigmund Freud - o criador da psicanálise - publicou um livro com o sugestivo título O mal-estar na civilização. Nessa obra, Freud fez um diagnóstico do processo civilizatório e constatou que os seres humanos estão condenados a viver nesse conflito irremediável entre as exigências pulsionais (a liberdade) e as restrições sociais (as leis).

Freud retoma a clássica questão aristotélica que atravessa toda a histó­ria ocidental: O que os homens pedem da vida e o que desejam nela realizar? A resposta é categórica: a felicidade. Os homens querem ser felizes e assim permanecer. Toda ação tem em vista a conquista da felicidade.

Para analisar por que nos afastamos desse propósito, Freud apresenta uma reflexão decisiva para pensarmos a Ética civilizatória como promessa de felicidade:

"Grande parte das lutas da humanidade centraliza-se em torno da tarefa única de encontrar uma acomodação conveniente - isto é, uma aco­modação que traga felicidade - entre essa reivindicação do indivíduo (liber­dade) e as reivindicações culturais do grupo (leis), e um dos problemas que incide sobre o destino da humanidade é o de saber se tal acomodação pode ser alcança da por meio de alguma forma específica de civilização (religião, ciência filosofia, arte ou se esse conflito é irreconciliável" (p. 116).

A posição de Freud é clara: o conflito é irremediável.

A tarefa da civilização é humanizar esse animal racional chamado homem.

Acompanhando os argumentos de Freud na obra citada, podemos encontrar elementos para caracterizar o processo civilizatório construído pelos seres humanos. A civilização é concebida como tudo aquilo por meio do que a vida humana se elevou acima de sua condição animal. Os humanos são seres da cultura. A cultura é a morada do homem. O acesso aos bens culturais produzidos em toda a história é o que define nossa condição huma­na.

O homem é um animal cujo maior desejo é tornar-se humano.

A elevação apontada por Freud é o que nos diferencia dos outros animais. A vida humana difere da vida dos animais em dois aspectos: os conhecimentos e as capacidades adquiridas para controlar as forças da natu­reza; e os regulamentos (leis, normas, regras) para ajustar as relações dos homens uns com os outros.

Na luta pela sobrevivência em um mundo sombrio e assustador, o animal teve de enfrentar três grandes desafios: o poder superior da natureza, que nos ameaça com forças de destruição; a fragilidade de seu próprio corpo, condenado à dissolução; e as leis que regulam suas ações sociais. Os conhecimentos científicos e tecnológicos procuram responder- a esses desafios. As práticas religiosas, os sistemas de crenças também. As teorias filosóficas e as produções artísticas inserem-se nessa tarefa de encon­trar caminhos para esses desafios humanos.

A conclusão derradeira de Freud é que: "a civilização tem de ser defen­dida contra o indivíduo e que seus regulamentos, suas instituições e suas ordens dirigem-se a essa tarefa (...) fica-se assim com a impressão de que a civilização é algo que foi imposto a uma maioria resistente por uma minoria que compreendeu como obter a posse dos meios de poder e coerção" (p. 117).

Todos nós estamos submetidos ao processo civilizatório. Desde o nascimento até a morte, somos atravessados pelos critérios que sustentam a civilização: o bem e a justiça.

Finalmente, como relacionar ética (instância individual) e civilização (instância coletiva)?

A ética, pensada no campo da lei, leva-nos à mesma conclusão de Freud. Ao obter a posse dos meios de poder e coerção, uma minoria impõe seus valores à grande maioria que resiste. O poder é concebido como essa imposição de uma minoria à grande maioria.

Mas a conclusão de Freud nos permite pensar o poder também como resistência por parte da maioria. Nesse caso, o Estado aparece como o grande gerenciador desse conflito, por meio de seu sistema de leis e práticas de coerção (prisão, por exemplo).

Há também outra possibilidade de pensarmos a ética: como exercício estético. Em meio a esse conflito irreconciliável entre as exigências indivi­duais por liberdade e as restrições impostas pelo regulamento social, pode­mos criar condições para instaurar uma ética da beleza: fazer da vida uma obra de arte, criar condições para que cada um produza sua própria vida como quem esculpe o mármore ou pinta uma tela. O mármore ou a tela seriam as imposições / restrições impostas pela civilização e das quais não podemos escapar, mas, como sujeitos de nossa vida, podemos esculpir/pintar com o formão e o pincel de nossa liberdade, construindo nossa própria existência.

Silvio Gallo, em Ética e Cidadania : Caminhos da Filosofia.

Postado

Cynthia Mello Ferrari